Nesta quinta-feira, 31, o Portal Imagineacredite traz uma entrevista exclusiva com a psicóloga clínica especialista em Dependência Química e Mindfuness pela Universidade Federal de São Paulo, Laura Fracasso, que de Fracasso não tem nada mais do que o nome. Dona de um currículo invejável, ela é uma daquelas brasileiras que se dedicam a resgatar vidas desgraçadas pelas drogas, através do conhecimento. Além disso, em sua bagagem, ela carrega 17 anos de gestão técnica no Instituto Padre Haroldo, onde ajudou a implantar um método de acolhimento a usuários de substâncias psicoativas que é referência nacional.
Laura também foi gestora do Programa Meninos em Situação de Rua, por cinco anos. Sem contar que a sua história com comunidade terapêutica se iniciou em 1991, no Centro Italiano de Solidariedade, em Pádua, na Itália, e que é filiado à Federação Italiana de Comunidades Terapêuticas. Aliás, foi nessa instituição que ela afirma ter entrado como os outros dependentes químicos, muito embora não sofresse com nenhum problema oriundo de substâncias psicoativas.
Diante disso, na entrevista de hoje, você conhecerá um pouco mais da história dessa grande mulher, da sua relação com o tratamento terapêutico e das mudanças que implantou no Instituto Padre Haroldo. Tudo isso sem contar com a visão dela a respeito de temas como as CTs, o financiamento de vagas pelo governo federal, a nova Política Nacional Sobre Drogas, e o acolhimento feminino em comunidades terapêuticas.
Entretanto, como estamos às vésperas do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que tem o objetivo de legalizar as drogas no Brasil, a reportagem de Imagineacredite não poderia deixar de questioná-la sobre este tema. Para ela, o debate sobre a possibilidade do uso medicinal do canabidiol está sendo usado como argumento para reduzir o poder da droga para legalizá-la.
Confira a entrevista na íntegra:
Imagineacredite: Como a senhora desembarcou no mundo da dependência química e das Comunidades Terapêuticas?
Laura Fracasso: Em 1991, decidi sair da área da psicologia organizacional, porque não encontrava mais sentido em fazer o trabalho que fazia. Pedi demissão e durante um ano fiz cursos e fui assistir a palestras sobre temas que me interessavam. Digo que foi um ano bem produtivo porque pude entrar em contato com diversos temas. Um dos que me interessou com mais impacto foi uma apresentação de um grupo de italianos da cidade de Trieste, sobre Luta Antimanicomial. Fiquei encantada com a proposta da relação horizontal que propunham aos pacientes e as diferentes alternativas terapêuticas apresentadas. Fui conversar com eles e, para minha surpresa, disseram que eu poderia fazer um estágio no hospital de Trieste com hospedagem, alimentação e ajuda de custo. Só teria que arcar com o custo da viagem. Era uma oportunidade única e não pensei duas vezes: em julho embarquei para a Itália. Como queria melhorar minha fluência em italiano, resolvi trabalhar em uma pizzaria e gelateria da minha família, no sul da Itália, em Palinuro.
Em outubro, fui para Trieste e eles me propuseram conhecer o tratamento com dependência química em comunidades terapêuticas. Como meus familiares moravam perto de Pádua, decidi pegar os contatos daquela região e ir conhecer a proposta de tratamento. Devo dizer que gostei muito da maneira acolhedora e respeitosa com que tratavam os dependentes, além da beleza do lugar – sempre muito bem cuidado e alegre.
Por eu não ter conhecimento sobre dependência química e, consequentemente, sobre comunidade terapêutica, a proposta foi que eu me internasse por quatro meses para fazer uma vivência do modelo proposto, sendo que o tratamento completo era de dois anos e meio. Aceitei e foi dessa maneira que eu cheguei a uma comunidade terapêutica: pela mesma porta do dependente. Foi uma experiência muito marcante e importante para a minha decisão de trabalhar na área e na formação da profissional que sou hoje.
IA: A senhora passou 17 anos no Instituto Padre Aroldo. Por isso, como descreveria a sua relação com essa instituição e com a Comunidade Terapêutica de forma geral?
LF: Minha relação com o Instituto Padre Haroldo e com a Comunidade Terapêutica foi e é uma relação intensa, porque faz parte da profissional que me tornei. Quando cheguei ao Instituto, tive dúvidas se teria competência para colocar em prática o que eu tinha de conhecimento sobre comunidade terapêutica, principalmente, porque fui recebida por uma equipe nada acolhedora e muito disfuncional.
Aos poucos, fui identificando as pessoas com forte perfil para trabalhar na área, mesmo que não dominassem o assunto e fui investindo para que pudessem se tornar profissionais com competência técnica e emocional. Alguns eram ex-pacientes e eu os incentivei a darem prosseguimento aos estudos, inclusive em cursos superiores. Para isso, conseguimos bolsas de estudo com empresas da região de Campinas. E assim fui renovando toda a equipe, procurando ter pessoas com conhecimento técnico, ética e com abordagem humanizada.
IA: Em que consiste o método Comunidade Terapêutica na abordagem de tratamento aos pacientes com transtorno de uso de substâncias que implantou no Instituto Padre Aroldo?
LF: Gosto de usar uma definição dada por Dr. George De Leon. Segundo ele, a Comunidade é o modelo e método da abordagem da comunidade terapêutica para tratamento do transtorno de uso de substâncias (TUS), porque propõe a convivência entre os pares para uma mudança no estilo de vida e não apenas a interrupção do uso de substâncias psicoativas. Esse modelo propõe atividades de autoconhecimento e autocuidado para que o paciente seja o protagonista do seu processo de tratamento. A equipe é facilitadora do processo, mas cada paciente tem que fazer o seu próprio caminho.
IA: Em sua opinião, qual ou quais os principais desafios das comunidades terapêuticas atualmente e de que forma eles impactam na formulação de políticas públicas para o fortalecimento dessas entidades?
LF: Os principais desafios são: a composição da equipe, a manutenção da essência do modelo e método que pode ficar vulnerável diante das exigências de editais, a consolidação das conquistas realizadas com a apresentação de dados confiáveis e evidências científicas, a consolidação do relacionamento com a rede de atendimento da população, além da escuta e abertura para as novas demandas da população assistida. Esses desafios impactam na formulação de políticas públicas. Sem considerá-los, é impossível atender às necessidades dessas instituições e capacitar suas equipes.
IA: Em relação ao acolhimento de mulheres, o que falta para que elas tenham uma assistência adequada? De que forma o poder público, em sua ótica, pode ajudar? O financiamento de vagas em CTs como tem feito do Ministério da Cidadania resolve?
LF: O acolhimento feminino precisa se adequar às necessidades desse público que tem menos acesso ao serviço que o masculino. Mesmo onde o acesso é garantido, em geral não há atendimento das demandas dessa população em suas especificidades. Não se pode pensar na demanda feminina sem considerar filhos, moradia e emprego.
O poder público pode ajudar ao incentivar e financiar comunidades terapêuticas para mulheres e seus filhos, incluindo as gestantes, e ao promover cursos de capacitação para a equipe. Já o financiamento existente tem contribuído muito para as demandas que crescem a cada ano. O importante é que haja monitoramento dessas instituições para que não haja um desserviço com o dinheiro público.
IA: A senhora é adepta da ideia de que as CTs no Brasil de hoje vivem um novo momento na sua relação com o governo federal? Se sim, de que forma a senhora acha que esse período deve ser utilizado, haja vista que essas entidades ainda têm muito que crescer?
LF: Nós, instituições e os profissionais de CTs, estamos vivenciando um período que é fruto de muita batalha e comprometimento com o modelo. Foram anos de descaso e desrespeito com a abordagem e, finalmente, nos consideram na elaboração de políticas efetivas e não apenas no papel. Temos muito a evoluir e isto só será possível por meio do diálogo e respeito ao trabalho que está sendo feito. Não tenho como não ressaltar a postura do Dr. Quirino frente a este processo: ele tem sido sério, respeitoso e incansável na interlocução com todos os envolvidos.
IA: A dependência química além de ser uma das principais causadoras de suicídio, também é um dos principais fatores que levam o indivíduo a situação de rua e toda a violência inerente às drogas. Em sua ótica, qual o maior desafio para lidar com esse público? Em relação aos moradores de rua, o Instituto Crescer lançou o primeiro Centro de Triagem de Brasília, estaria aí uma alternativa para retirá-los das ruas ou a situação ainda é mais delicada?
LF: Acredito que são necessárias ações para o acolhimento da população em situação de rua. Atualmente vemos famílias inteiras em situação de rua e isto é algo que não podemos aceitar, mas que é a realidade e não só por uso de substâncias psicoativas. Existem questões sociais e familiares muito desafiadoras que tornam necessárias todas as ações de acolhimento. No entanto, o acolhimento por si só não basta. É preciso ter clareza quanto ao que se pode e deve oferecer para esta população durante o tratamento e o após para que não retornem à situação de rua. É preciso que diferentes ações convergentes de diferentes secretarias, que sejam feitas de forma para garantir a reinserção social dessas famílias de modo que não retornem à situação de rua.
IA: Para encerrar, qual a sua opinião sobre a possível descriminalização das drogas no Brasil por parte do STF? Acredita que essa possibilidade aliada ao debate sobre o canabidiol medicinal tem ajudado a favorecer a diminuição dos riscos e danos causados pelas drogas?
LF: Penso que a possibilidade de descriminalização das drogas é um fato grave e criminoso, porque não estão sendo consideradas as evidências científicas a respeito. Estão utilizando a possibilidade do uso do canabidiol medicinal para confundir a população em geral. Trata-se de coisas diferentes. Informar a sociedade a respeito dos riscos que a questão envolve é fundamental. É urgente que a sociedade seja ouvida e que seja considerado o que a população decidir. Temos um grande número de familiares e dependentes que precisam ser ouvidos em relação ao que vivenciaram e vivenciam em relação a esta questão.
Há alguns aspectos que deveriam ser debatidos antes de se considerar a descriminalização. Por exemplo, por que não investir em prevenção em vez de descriminalização? Quais são os interesses reais por trás destas ações? Se falta controle da venda de drogas lícitas para menores de idade, como esperar que isso será feito adequadamente com as drogas que se pretende descriminalizar? São perguntas simples que precisam ser respondidas com urgência antes de qualquer atitude intempestiva, porque o assunto demanda conhecimento e reflexão que só são possíveis com debate e informação clara disponível para a população.
Por Sérgio Botêlho Júnior