Nesta sexta-feira, 4, o Portal Imagineacredite traz uma entrevista exclusiva com a psicoterapeuta especializada em dependência química Kelly Carvalho. Ela é especialista em Aconselhamento em Dependência Química, Conselheira em Co-dependência Familiar pela Unifesp/Uniad, diretora da Comunidade Terapêutica Revitaly, coordenadora do Projeto Assistencial de Cuidados e Tratamento Feminino de Dependência Química, membro da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Drogas e palestrante de prevenção ao suicídio e depressão infanto-juvenil.
Este vasto currículo começou a ser construído, justamente, quando Kelly, em seu estágio acadêmico, depois de atuar junto a idosos e crianças, pode atuar numa comunidade terapêutica. Lá, ela se sentiu completa e resolveu desenvolver um olhar especial para as mulheres que sofrem com a dependência química. Por isso, na entrevista de hoje, você a verá falando das diferenças no tratamento de reabilitação entre homens e mulheres, bem como destacando que as mulheres, mesmo diante das dificuldades, ainda conseguem obter mais resultados positivos em seu tratamento.
Além disso, tendo como base as novas conquistas obtidas por meio da Nova Política Nacional Sobre Drogas (PNAD) do Governo Federal, a psicoterapeuta especializada foi questionada sobre temas como o apoio familiar aos parentes dos indivíduos que sofrem com a dependência, as principais causas deste mal social; bem como de ações que podem ajudar a promover a reabilitação dos dependentes químicos.
Outro tema bem destacado por ela foi àquele referente ao suicídio no Brasil. Será que a mensagem não está chegando ao público-alvo e, por isso, ainda registramos muitos casos de suicídio no país? Essas e outras perguntas você confere agora no Portal Imagineacredite.
Confira a entrevista na íntegra:
IA: O que a levou a uma especialização em dependência química?
KC: Durante meu período acadêmico, eu tive a oportunidade de realizar alguns estágios incluindo crianças e idosos, o qual eu não obtive uma satisfação profissional. Porém, quando experimentei o primeiro contato com uma instituição de reabilitação de dependentes químicos, naquele instante, tive a certeza do caminho que eu iria seguir. Os desafios no trabalho de reabilitação dos usuários de drogas me fascinaram, principalmente, na reabilitação feminina.
IA: Em sua opinião, existe alguma diferença no tratamento de dependentes químicos homens e mulheres?
KC: Sim. Tanto no tratamento quanto na drogadição do gênero feminino. As questões fisiológicas, sociais e psicológicas da mulher dependente química são absolutamente diferentes do gênero masculino! A progressão da doença nos casos de mulheres é demasiadamente maior, pois, em menos de cinco anos de consumo, 74% das mulheres passam do uso de álcool e da maconha ao consumo do crack. Tudo isso, sem contar que cerca de 60% das mulheres consumidoras de drogas tendem a financiar o seu vício através da prostituição, aumentando ainda mais os danos físicos e psicológicos das mulheres.
Aliada a esses fatores, o preconceito e o julgamento da sociedade no caso de mulheres dependentes químicas são muito maiores, o que acaba dificultando a aceitação ao tratamento, pois são julgadas pela sociedade como promíscuas, amorais e irresponsáveis. Mulheres dependentes sofrem com a negação e ocultação da situação pelos familiares, enquanto homens recebem, diariamente, maior mobilização para tratar o problema — seja da família, da medicina ou da própria mídia. No entanto, a mulher é muito mais determinada e engajada quando resolve passar por uma reabilitação, contribuindo assim de forma muito positiva para os resultados do tratamento e diminuindo muito o risco de recaída.
IA: As drogas destroem a capacidade de tomar atitudes sabias, mas também deixam marcas nas pessoas mesmo após a sua recuperação. Por isso, como resgatar os valores e principalmente a autoestima dos indivíduos, sobretudo das mulheres?
KC: Após todo processo de abstinência e desintoxicação do indivíduo vem o que eu acredito ser o maior desafio do tratamento do dependente químico, que é a reabilitação cognitiva e psicológica de cada um. Como a dependência química é uma doença multifatorial, isso exige do profissional um conhecimento amplo sobre a doença e seus fatores. Sabemos que, dificilmente podemos reabilitar os neurônios que já morreram, mas podemos estimular as áreas que continuam preservadas e deixá-las mais fortes para compensar o déficit cognitivo que é chamado de neuroplasticidade.
Porém, nas mulheres, por serem fisicamente e psicologicamente mais vulneráveis, o desafio é ainda maior. As mulheres sofrem muito mais abusos e agressões físicas durante o período de uso, muitas vezes perdem a guarda de seus filhos e se envolvem em crimes, por isto o trabalho de resgate da autoestima, dos valores e das questões psicológicas e emocionais é uma tarefa bem mais complexa entre usuários do sexo feminino! Por não termos um atendimento específico para esse público específico, algumas sofrem discriminação durante o tratamento e acabam interrompendo-o, mantendo a abstenção ao uso, porém convivendo ao longo da vida com a inabilidade de lidar com os sentimentos como culpa e ressentimentos.
IA: Durante o processo de resgate das vidas abaladas pelas drogas, é necessário também acompanhar as famílias. Sendo assim, como descreveria esta etapa do tratamento? É mais delicado do que lidar com o dependente? Qual a importância da família nesse processo?
KC: Verdade! O acompanhamento familiar é um processo extremamente importante para um resultado satisfatório na reabilitação do dependente. Em alguns casos sim, a família fica tão refém da manipulação e articulações do dependente químico que acaba dificultando o trabalho de reabilitação. Por isso, o apoio da família durante todo o tratamento é de suma importância, pois a dependência química é uma doença progressiva, incurável e de âmbito fatal caso não seja detida. Então o apoio familiar é indispensável tanto durante o tratamento como após. Afinal, essa reinserção social que geralmente se inicia nos lares são os primeiros passos para a reinserção profissional entre outras.
IA: Enquanto psicoterapeuta envolvida em diversos temas ligados à dependência química, qual a sua visão e avaliação sobre a nova Política Nacional Sobre Drogas? Acredita que ela consegue contemplar as diversas nuances que envolvem o complexo mundo das drogas?
KC: Acredito que a Nova Política Nacional Sobre Drogas será um marco no avanço ao tratamento do dependente químico, bem como na prevenção ao uso de entorpecentes. Desses 10 anos de atuação, eu nunca presenciei tamanho investimento e um olhar mais complacente para as comunidades terapêuticas. Por isso, acredito que ela alcance sim uma esfera que nunca alcançamos até hoje, porém a complexidade realmente é imensa, mas estamos bem esperançosos com as mudanças e os rumos que estão sendo tomados na questão da dependência química no Brasil.
IA: A senhora, enquanto membro da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Drogas, qual ou quais as principais razões para as pessoas adentrarem ao mundo das drogas? As famílias podem atuar nessa prevenção? Se sim, de que forma?
KC: Essa talvez seja uma das questões mais estudadas e discutidas entre os pesquisadores e profissionais da área. Nestes 10 anos trabalhando na área de Dependência Química, o que pude concluir é que se trata de uma doença multifatorial, não existindo um padrão ou uma linha a seguir nos casos de dependentes químicos. Sendo assim, inúmeras são as razões ao qual um indivíduo entra no mundo das drogas.
Porém, alguns fatores são bem comuns em grande maioria. Predisposição genética, filhos de dependentes químicos têm uma grande chance de desenvolver a doença; curiosidade e influência de “amigos”, que é a inabilidade de lidar com os sentimentos, aonde o indivíduo vai em busca de uma fuga, onde ilusoriamente ele acredita que encontra; aspectos sociais, entre outros. Por isso, acredito que a prevenção ainda é o melhor caminho a ser seguido e, sem dúvidas, alguma a família não só pode como deve contribuir nesta prevenção.
Há algum tempo, falar sobre drogas nos lares era um grande tabu, mas este quadro mudou, e as famílias são fundamentais para auxiliar na prevenção. Falar abertamente sobre o assunto e não fugir da realidade, caso perceba que o problema chegou dentro de casa, pois como em quaisquer outras doenças o tratamento precoce tem um resultado mais positivo.
IA: Mudando de assunto. Seu currículo consta que a senhora ministra palestras sobre prevenção ao suicídio e depressão infanto-juvenil, mas o país ainda registra muitos casos do tipo, embora muitas campanhas de conscientização sejam realizadas. Por isso, que avaliação a senhora faz deste cenário? A mensagem não está chegando ao seu público-alvo?
KC: Realmente estamos vivendo uma situação preocupante no aumento dos casos de suicídio. Só no Brasil, 36 pessoas tiram suas vidas por dia e o mais alarmante é que a faixa etária das vítimas é de 14 a 29 anos, ou seja, numa fase em que o indivíduo deveria estar vivendo a plenitude da vida. O Brasil é um dos países com a maior dificuldade de se falar sobre o assunto, por questões religiosas e de proteção à imagem das famílias, por isso, pouco se falava no assunto quando ocorria um caso dentro da família. E foi preciso uma grande mobilização de inúmeras instituições que lutam em prol da vida, para que pudéssemos hoje falar de forma aberta e transparente sobre este problema.
Infelizmente, o consumismo e as redes sociais têm um impacto muito grande nesta questão, a falsa ideologia de felicidade e paz familiar explícita nas redes sociais têm adoecido psicologicamente nossos adolescentes e jovens. A falta de diálogo entre pais e filhos e pressão social também contribuem para que esses números cresçam. Mas a avalição geral que posso fazer é que estamos vivendo novos rumos na questão da informação e também acolhimento a pessoas que pensam em tirar suas vidas, pois hoje somos contemplados com um trabalho maravilhoso do Centro de Valorização da Vida, que mantém um número 188, 24 horas por dia, sete dias da semana, onde voluntários extremamente capacitados fazem este atendimento a pessoas que estão em total desespero e a única saída aparentemente é desistir da vida. Então creio que partir de agora está mensagem seja recebida de forma mais positiva e assim atingiremos o público-alvo com maior eficácia.
IA: Tendo em vista que muitos problemas psicológicos são negligenciados por parte da população, que os desconhecem. Em sua visão, qual a melhor forma para lidar com a depressão e prevenir casos de suicídio? Governos e família devem atuar juntos?
KC: Acredito que o alicerce fundamental para a prevenção ainda seja o investimento na informação e no diálogo entre os familiares e, é claro, na procura por um profissional da área. Pesquisas apontam que 65% das pessoas que se suicidam nunca passaram por psicólogo ou fizeram algum tipo de terapia. Nesse sentido, familiares não conseguem perceber os principais sinais e, muitas vezes, sem saber lidar com a situação, acabam falando de uma forma que motive ainda mais a vítima a concluir aquele desejo, como por exemplo: “Levanta-se dessa cama, você deve estar doente”, “Não aguento mais essa sua preguiça!”.
Sim, o governo e a família não só podem como devem atuar juntos. Além disso, um grande avanço tem sido feito por parte do governo e outras instituições, mas os números ainda são alarmantes e ainda há muito a se fazer.
IA: Fique à vontade para as suas considerações finais.
KC: Olhando em um âmbito geral, acredito que estamos trilhando um caminho bem promissor. Há anos não se via tamanho empenho para reabilitação de dependentes químicos. Entretanto, ainda a muito que se fazer para uma reinserção destas pessoas ao mercado de trabalho e ressocialização. Portanto, as mudanças são otimistas e tem injetado ânimo aos profissionais da área, que com o novo auxílio do governo, almejamos alcançar o objetivo final: a reestruturação do tratamento do indivíduo.
Por Sérgio Botêlho Júnior