Pablo Kurlander: “A dependência química está cheia de mitos e de moralidade”

A primeira entrevista ping-pong do Portal Imagine. Acredite é com o psicólogo uruguaio Pablo Andrés Kurlander Perrone. Com 42 anos, ele é casado, pai de três filhos, e um dependente químico em recuperação há 24 anos que defende com unhas e dentes as causas envolvendo comunidades terapêuticas.

Sua defesa das CTs se deve ao amor que desenvolveu por elas logo depois da sua acolhida em uma unidade instalada no Rio Grande do Sul. Na época, ele havia acabado de deixar o cárcere que lhe foi imposto sob a acusação de tráfico de drogas. Uma vez que vendia drogas para seus conhecidos para alimentar o seu vício.

Ele, assim como muitos dependentes na atualidade, iniciou a dependência química por meio do consumo do álcool, aos 14 anos, em seguida, com o apoio do seu grupo social, migrou para a maconha até que se perdeu de si mesmo. Mas tudo mudou quando iniciou o tratamento e junto aos demais acolhidos pôde se conhecer e ser quem ele realmente era.

Com o final do tratamento terapêutico, Pablo – já apaixonado pela causa – dedicou-se a coordenação de algumas comunidades. Mas foi logo na primeira que ele teve sua grande decepção, ao perceber uma série de negligências que eram cometidas. Entretanto, um sonho mudou seus rumos e ele mudou para uma CT muito pequena, onde pode desenvolver um trabalho baseado na ética e que culminou com a fundação de mais de 10 comunidades no Brasil.

Entretanto, para quem pensa que a sua decepção foi motivo para atacar o projeto terapêutico engana-se, pois ele juntou-se a entidades de classe de renome nacional e internacional com o objetivo de fortalecer o citado modelo de tratamento e combater, sobretudo as falsas comunidades terapêuticas. Essa dedicação o tornou hoje no Gestor Geral da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), membro da Junta Diretiva da Federação Latinoamericana de Comunidades Terapêuticas (FLACT), Conselheiro da Federação Mundial de Comunidades Terapêuticas (WFTC), e Vice-Presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas (CONED-SP).

Por isso, diante desta trajetória, nesta entrevista você verá, entre os diversos assuntos abordados, o Pablo falando sobre: as mudanças promovidas em sua vida graças ao tratamento terapêutico, os desafios das CTs no Brasil, da nova Lei Sobre Drogas e a Nova Política Nacional Sobre Drogas, bem como da existência de muitas comunidades terapêuticas clandestinas atuando no país e da sua ânsia pelo combate a essas instituições em prol da promoção da verdadeira CT.

Confira a entrevista na íntegra:

Imagine.Acredite: Em sua biografia, o senhor afirma que foi dentro de uma comunidade terapêutica que pôde se encontrar consigo mesmo. Por isso, como descreveria esse processo dentro da comunidade?

Pablo Kurlander: A verdadeira Comunidade Terapêutica é um espaço de encontro consigo mesmo, de se ver no outro, no igual a você, aquele que já passou por aquilo que você está passando agora. Isso vale para o grupo e para a parte da equipe que é composta por dependentes químicos em recuperação, os monitores. Como diz a Filosofia de Daytop, famosa dentro das Comunidades Terapêuticas: “onde senão em meu companheiro, poderei encontrar meu espelho?”.

Por outro lado, a CT em que eu me recuperei trabalhava com os 12 Passos, e durante este programa, no 4º Passo pude me debruçar na escrita de minha vida, e no 5º Passo partilhar pela primeira vez todas as minhas vivências, na segurança de ser ouvido sem julgamentos.

O ambiente verdadeiramente terapêutico propicia a possibilidade de olhar para si através do grupo, de errar em segurança, de vivenciar as potencialidades, de aprender novas habilidades. É neste ambiente terapêutico, entre iguais, que você pode ser aceito como é, e assim encontrar-se consigo mesmo.

I.A: Diante disso, como descreveria Pablo antes e depois de uma comunidade terapêutica? O que o fez entrar no mundo da dependência química?

PK: O que leva uma pessoa a iniciar o consumo de drogas pode ser qualquer coisa, não precisa ser necessariamente um problema grave, como se pensa geralmente. O problema está no que faz a pessoa continuar usando, a função que a droga começa a cumprir na vida.

Comecei o uso com 14 anos, com álcool, com a grande maioria das pessoas. Era um adolescente tímido, inseguro, com pouca autoestima, e o álcool me propiciou sentir que podia ser quem eu desejava: perder a vergonha, fazer amizades, ser aceito nos grupos.

Depois experimentei maconha, e a aceitação grupal desta nova “personalidade” fez com que eu desejasse manter os novos comportamentos adquiridos, dentre eles o uso de drogas.

De forma muito resumida, Pablo antes da CT era alguém que dependia da aprovação dos outros para se sentir seguro, e depois da CT, e a cada dia mais, a segurança passou a vir de dentro, da percepção da minha capacidade.


I.A: De onde vem a sua paixão pela comunidade terapêutica? O que é que o motiva para todos os dias militar em favor delas?

PK: Sem dúvidas a paixão começou pela vivência pessoal dentro da CT. Quando algo é muito bom para você, é natural querer espalhar isso para outras pessoas. Eu vi muita gente melhorar de forma muitas vezes inacreditável dentro da CT, tanto durante meu próprio tratamento, quanto depois, como parte da equipe.

A minha motivação para dedicar a vida a lutar pelas CTs se baseia no fato de acreditar profundamente no potencial terapêutico da CT, no conceito original de CT, no intuito verdadeiro das CTs terem sido criadas, que é devolver a dignidade e a autonomia para aqueles que sofrem com transtornos mentais, no início, e depois com a dependência química.

Porém, no Brasil, por questões históricas na implementação da Reforma Psiquiátrica o conceito original de CT foi se perdendo com o tempo, havendo hoje uma infinidade de locais que se autodenominam CTs que em nada se assemelham às verdadeiras CTs, praticando inclusive toda forma de violação de direitos, de violências e abusos.

A minha luta, assim como a de todos meus companheiros da FEBRACT, é para que esta realidade possa ser mudada, para que as CTs possam oferecer à população toda a sua capacidade terapêutica, e também para que esse tipo de local, para que essas falsas CTs, não mais existam.

I.A: O que o fez buscar se integrar a entidades como a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), a Federação Latino-Americana de Comunidades Terapêuticas (FLACT) e a Federação Mundial de Comunidades Terapêuticas (WFTC)?

PK: Sempre tive grande admiração pela FEBRACT, desde que a conheci em 2001, quando fiz o primeiro curso da FEBRACT em Campinas, no antigo Casarão da Vila Brandina.

Nunca imaginei que um dia iria trabalhar junto com o Padre Haroldo e sua equipe, nunca tive essa pretensão, foi acontecendo naturalmente.

A participação na FLACT e na WFTC acabou se dando graças ao fato de estar desenvolvendo a função de Gestor Geral da FEBRACT, que é hoje Vice-Presidente da FLACT, na pessoa de seu Presidente Beto Sdoia, mas que eu represento na ação. Na WFTC estou por assumir uma das Vice-Presidências representando a FEBRACT e a FLACT, o que deve acontecer em setembro próximo, durante a pré-Conferência Mundial e a Conferência Europeia de CTs, em Tessalônica, na Grécia, na qual fui convidado também para apresentar os dados da minha pesquisa de Doutorado, que é a primeira pesquisa de eficácia do tratamento na CT do Brasil e da América Latina.

A proximidade com a WFTC também nos trouxe uma estreita relação com a Associação Proyecto Hombre, maior instituição de atendimento à dependência química da Europa, com uma rede de mais de 230 serviços só na Espanha, tendo também atuação em Itália e Portugal. Proyecto Hombre também possui um dos melhores programas de capacitação para CTs do mundo, e estarão vindo no final de outubro para o Brasil, para o nosso V Congresso Brasileiro de CTs, em Curitiba, no Paraná.

I.A: Como membro dessas entidades de classe, em sua ótica, qual ou quais os maiores desafios das comunidades terapêuticas espalhadas pelo mundo na atualidade? Eles, de algum modo, diferem da realidade brasileira e ou latino-americana? Se sim, até que ponto?

PK: A realidade das CTs do Brasil é absolutamente diferente da do resto do mundo, com exceção da América-latina, com a que se assemelha mais.

Fora da América Latina as CTs são muito reconhecidas e inseridas na rede de atendimento ao dependente químico, tanto em ações de prevenção, redução de danos, tratamento e pós-tratamento. Não há grupos contrários às CTs, não há violação de direitos, nem violência, nem proselitismo religioso nas CTs fora da América Latina. É uma realidade de um trabalho técnico, ético, alinhado com as evidências científicas, e sem contradições com o sistema de saúde pública, como acontece no Brasil.

Já no Brasil e na América Latina, por terem vivenciado o mesmo processo inadequado de implantação da Reforma Psiquiátrica (ver no artigo), as CTs se constituíram como entidades de base religiosa, já que as igrejas tiveram que dar conta da lacuna que o estado deixou quando começou a eliminar indiscriminadamente os leitos psiquiátricos, sem ter organizado nenhum outro serviço de referência.

Ao longo de mais de 50 anos de atuação no Brasil, muitos destes locais evoluíram para modelos mais técnicos, não por isso deixando a espiritualidade de lado, porém não fazendo desta a única ou principal ferramenta terapêutica.

Um grande desafio para as CTs do Brasil é mudar a compreensão que se tem da dependência química, que durante muito tempo foi considerada muito mais como um problema moral do que como um transtorno multifatorial. A forma de enxergar um problema defina o modo em que se trata ou se aborda. As CTs do Brasil estão num ritmo de evolução técnica, umas mais que outras e, pela lei natural do desenvolvimento, aquelas que não se adaptem às novas técnicas terapêuticas tenderão a desaparecer.

Outro grande problema é a confusão que existe no Brasil entre as CTs e os locais que realizam internações involuntárias, geralmente de forma clandestina e absolutamente irregular.

As verdadeiras CTs são equipamentos que atendem de forma exclusivamente voluntária, orientadas pelo respeito à dignidade humana, à gestão compartilhada do processo terapêutico, e com o objetivo principal da reinserção social do usuário.

Não existe no mundo uma rede clandestina de internações involuntárias irregulares como existe no Brasil, as equipes das CTs do resto do mundo não conseguem acreditar que aqui possa existir uma coisa dessas.

I.A: A última edição do Atlas da Violência apontou as drogas como uma das principais causas de homicídios no país. Por isso, que avaliação o senhor faz da nova Política Nacional Sobre Drogas e da nova Lei Sobre Drogas? Elas são suficientes para enfrentar o flagelo das drogas?

P.K: A nova política sobre drogas e a nova Lei trazem de volta recursos terapêuticos que foram negligenciados por décadas no Brasil, como as CTs e as internações psiquiátricas, que quando realizadas de forma adequada são de grande valia neste cenário.

Esta reincorporação de recursos traz a possibilidade de atender um grande público que se encontrava desassistido, o que é muito válido nesta área.

Porém, considerando a amplitude do problema das drogas no Brasil, não será somente uma legislação que poderá modificar o cenário, já que a implantação eficaz desta depende de muitos outros atores.

A violência pode estar associada à droga, mas sem dúvidas também se associa a muitos outros fatores, como pobreza, desigualdade social, carência de recursos básicos como moradia, saúde, educação, etc.

E tampouco podemos esquecer que o principal vilão desta história não são as drogas ilícitas, mas o álcool, que é responsável pela absoluta maioria dos problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas no Brasil e no mundo.


I.A: Nessas novas normativas, o novo governo federal, depois de mais de 30 anos, reconheceu a utilidade das comunidades terapêuticas, e passou a financiar mais vagas e a desenvolver ações em comunhão com elas. Como tem observado isso? Que leitura o senhor faz dessa mudança radical do governo federal em relação a essas entidades?

PK: Como disse na questão anterior, a reincorporação de este tipo de equipamento é de extrema importância no cenário nacional.

Outra coisa que vemos com grande esperança é que com a regulamentação das CTs também pode ser implementada uma rotina de fiscalização mais efetiva, aumentando assim a possibilidade de eliminar as falsas CTs e todo tipo de mau serviço.

Financiar as CTs permite que o governo possa exigir delas melhor qualidade no serviço, maior equipe técnica, maior envolvimento da rede territorial em todo o processo.

Agora, como integrantes das CTs, temos a obrigação de aproveitar este momento histórico para mostrar que somos capazes de oferecer um tratamento digno, ético e técnico, capaz de contribuir de fato com a melhora da qualidade de vida do sujeito, produzindo assim um significativo impacto social, o que justifica o seu financiamento.

I.A: Embora seja amante da CT, o senhor é um ferrenho crítico de algumas entidades que prestam o serviço de comunidade terapêutica, sob o argumento de que elas não visam o objetivo maior que é cuidar da melhor forma de quem precisa de ajuda. Diante disso, ficam os seguintes questionamentos: Há muitas instituições desse tipo no Brasil? O que o senhor espera, enquanto militante e também representante da classe, do novo governo brasileiro em relação a esses casos especificamente?

PK: Sem dúvidas temos muitos mais maus serviços e falsas CTs do que CTs de fato no Brasil. A histórica falta de regulamentação, que contribuiu com a ausência de fiscalização, permitiu que toda sorte de local atendesse dependentes químicos sem nenhuma definição metodológica e, muito menos, ética.

Lamentavelmente a lacuna deixada pelo estado na implantação inadequada da reforma psiquiátrica criou uma enorme demanda por esse tipo de serviço, e as famílias procuraram desesperadamente por locais que dessem conta de seus entes queridos, assim como também a sociedade buscou lugares para colocar os indesejados, como aconteceu sempre ao longo da história.

Assim se criou um grande mercado negro de internações, proporcional à lacuna deixada pelo Estado. Por isso, uma vez que o Estado se propõe a preencher esta lacuna, vemos com otimismo este movimento como uma grande possibilidade de acabar de uma vez por todas com a proliferação destes locais.

O que não podemos esquecer e que, de acordo com as melhores evidências científicas do mundo, não existe uma única forma de tratamento ou atenção que seja capaz de dar conta de todos os casos, por isso as políticas públicas precisam focar na diversidade de possibilidades terapêuticas.

I.A: Para finalizar, que mensagem o senhor deixa tanto para quem precisa de ajuda, quanto para quem trabalha na linha de frente dos cuidados e prevenção às drogas?

PK: Para quem precisa de ajuda, peço que se informe antes de aceitar qualquer forma de tratamento. No desespero tanto o usuário quanto a família aceitam qualquer coisa, qualquer promessa mirabolante. Lamentavelmente a chance de se deparar com um serviço ruim é grande, por isso procure bem. Em nosso site (www.febract.org.br) temos uma grande lista de mais de 200 CTs filiadas em todo o território nacional.

Para quem trabalha na linha de frente peço que se capacite, que nunca pare de estudar, de buscar conhecimento, e de verificar se o que está fazendo é de fato eficaz. A dependência química está cheia de mitos e de moralidade que em nada ajudam o dependente químico a se recuperar. Recuperação é liberdade, autonomia e dignidade, qualquer coisa diferente disso dificilmente poderá ajudar de fato.

Por Sérgio Botêlho Júnior

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