Assim como em qualquer empresa, para dar certo, um trabalho que visa o resgate e a promoção de vidas destruídas pela dependência química, por meio da convivência e da espiritualidade, exige dos seus mentores e idealizadores muito afinco e dedicação. Do contrário, a probabilidade de o projeto afundar é muito grande. Tanto é que foi isso quase aconteceu com a Desafio Jovem, considerada a primeira comunidade terapêutica do Distrito Federal e a terceira em todo o Brasil.
Fundada entre 1977 e 1982, a obra foi fruto do lendário pastor norte-americano David Wilkerson. Ele se notabilizara por ter sido preso no Fórum de Nova York, quando tentava defender sete jovens que haviam matado um adolescente numa cadeira de rodas, estando todos eles sob o domínio das drogas. E no Brasil, ele despertou algumas lideranças jovens para enfrentar uma cruzada de esperança frente ao problema das drogas.
Desta forma, entre tantos trabalhos desenvolvidos em terras brasileiras, surge na capital federal a Desafio Jovem. Ela teve como seu primeiro presidente o saudoso Pastor Bernardo Johnson, responsável pela vinda de David Wilkerson ao Brasil, e grande amigo das obras de recuperação. Não podendo continuar na presidência da obra nacional, assumiu o cargo o Diretor Executivo, então Professor Galdino Moreira Filho, que presidiu até 1982. Ao se retirar da presidência, foi substituído pelo Pastor Nilton Tuller e logo depois pelo Pr. Carlos Alberto Leandro.
Embora tenha surgido num momento de grande movimentação em prol do resgate de vidas, a Desafio Jovem – depois do término do mandato do professor Galdino – começou a perder espaço e a se afundar em dívidas e ficar acéfala. Segundo Célia Regina de Moraes, diretora da Desafio Jovem desde 2012, a crise se deu pela falta de comprometimento dos que sucederam o educador.
“O pastor Galdino hoje tem quase 100 anos. Era um homem intelectual, de um cérebro maravilhoso. Planejador, (…), mas ele não é daquelas pessoas que põem a mão na massa, então as coisas foram acontecendo pelas mãos de pessoas que não tinham o amor que ele tinha. Para essas pessoas, tanto fazia se as coisas estavam indo bem ou ruim.
Com isso, a obra acumulou dívidas e foi perdendo suas propriedades, enquanto o pastor Galdino focou apenas no tratamento terapêutico, deixando a parte administrativa com ouras pessoas. E quando se deu conta da situação, viu que as dívidas eram enormes e incontroláveis. Por isso, precisou vender muita coisa para estancar a sangria”, relembra a diretora.
Vale lembrar que até esse momento mais agudo da crise, Célia não integrava a Desafio Jovem. Sua chegada ocorreu no começo desta década, quando a filha e sucessora do pastor Galdino morreu e ela ainda estava no processo de aproximação da CT, uma vez que buscava ajuda para o seu filho de 12 anos que havia se tornado dependente do crack, em São Paulo. Por essas coisas, ela foi conhecendo a Desafio Jovem e junto ao pastor Lindemberg Rezende resolveu largar tudo para promover a reestruturação administrativa, financeira, física, terapêutica e espiritual da comunidade.
“Quando eu vim, tinha o objetivo de cuidar de um por um, de ouvir, de aconselhar, de sentar-se embaixo de uma árvore e conversar. Mas Deus quis diferente e me trouxe para fazer a outra parte, que estou fazendo com muito amor. Pois quando cheguei, tínhamos apenas seis acolhidos e hoje são 38, então a coisa mais gostosa não é a quantidade de pessoas, mas a forma como eles te recebem e te olham. Eu sinto que eles nos vêm como uma esperança”, destaca.
Com a recuperação, Célia notou que a Desafio Jovem recuperou o prestígio que antes tinha e acrescentou que a instituição tem se preparado para elevar o número de acolhidos para 50, sendo que no passado eram mais de 100. “Quando você fala do Desafio Jovem, as pessoas ficam admiradas por todo trabalho feito pelo pastor Galdino e pelo estágio em que está agora. Entretanto, hoje, graças a Deus, a gente dar assessoria para outras comunidades, devido ao conhecimento adquirido na área administrativa e financeira”, comemora a diretora Célia.
O trabalho do Desafio Jovem
Com a reestruturação, a comunidade terapêutica voltou a prestar seus serviços aos dependentes químicos gratuitamente, tendo como base o método de tratamento terapêutico que foi colocado pelos idealizadores da obra. Segundo o pastor Lindemberg Rezende, presidente do Desafio Jovem, o tratamento dura nove meses e é dividido em duas fases.
A primeira fase, de acordo com ele, é a mais difícil. Uma vez que é onde ocorre a fase de adaptação ao modelo de tratamento, de convivência entre os pares, aliada à distância da família. “Nesse momento, o mais importante é o amor, eles precisam se sentir amados, aí eles começam a entender que aqui existe o amor que é doação”, comenta.
Contudo, a distância física dos familiares não é um problema no tratamento. Uma vez que, por meio das redes sociais, a comunidade terapêutica busca estreitar os laços com as famílias dos acolhidos, como contou a Célia Moraes. “A gente tem um grupo em que estamos em contato 24h com as famílias. Não desligamos! A gente posta algo e aí começa a interação e os efeitos disso se refletem no final do tratamento, pois os acolhidos não perdem o vínculo mesmo após sair daqui, e é isso que nos alimenta. A gente não ganha nada por isso, pelo contrário, pomos tudo que é nosso aqui, porque vale a pena”, acrescenta.
Já na segunda fase, os acolhidos já desenvolvem atividades em conjunto, partilhando mutuamente os desafios da caminhada, e recebendo a visita de familiares que geralmente notam mudanças físicas na pele, no comportamento e no olhar dos acolhidos. Por isso, é nessa fase que ocorre a Síndrome do “Já estou bom”, a qual faz eles pensarem ter vencido o vício e desejar abandonar o tratamento. “Então precisamos ajudá-los a entender que eles precisam terminar o tempo de recuperação, e concluir essa meta em suas vidas”, acrescenta o pastor Lindemberg.
Mas ao final da missão, a alegria é garantida. “O Crack destrói muito as pessoas, e aqui eles se reencontram com Deus e mudam a fisionomia. E para mim é uma sensação maravilhosa poder acompanhar esses jovens. Por isso, renunciei a tudo lá fora. Eu e minha esposa vivemos aqui com eles, são meus filhos e precisam ser amados e respeitados. Por isso, passamos vinte e quatro horas com eles aqui. […] Eu não sei fazer mais nada não ser cuidar de vidas preciosas”, afirma o pastor Lindemberg.
Novo momento para a Desafio Jovem
A comunidade terapêutica, segundo seu presidente, surgiu num momento em que o consumo da maconha era muito alto, quando comparado com a realidade atual. “As pessoas não eram tão danificadas no caráter, eram menos violentas, não tinha tanta situação de rua… de lá para cá, a coisa piorou bastante, não se respeita lugares para uso, as famílias estão vulneráveis ao consumo por parte dos usuários, a violência cada vez pior e muitos jovens nas ruas, a recuperação ficou mais difícil, mas com certeza ainda é possível”, observa Rezende.
Diante desta mudança, ele confidenciou a reportagem do Portal Imagine Acredite que o Desafio Jovem tem recebido pedidos de acolhimento de adolescentes de 11 anos, mas que este não são recebidos porque a comunidade recebe somente maiores de 18 anos. “A procura é imensa, três quatro ligações todos os dias, para serem acolhidos”, exemplifica.
Contudo, a luta contra as drogas, bem como as comunidades terapêuticas têm vivido um momento inédito em sua história. Uma vez que o novo governo federal mudou radicalmente sua postura sobre esses temas, instituindo a nova Política Nacional Sobre Drogas, a nova Lei Antidrogas, além de regulamentar e reconhecer os serviços prestados pelas CTs. Com isso, o Desafio Jovem, diante dos seus desafios, tem um parceiro atento as suas demandas, como destacou a diretora Célia Moraes, ao comparar a antiga SENAD (Secretaria Nacional Antidrogas) com a atual SENAPRED (Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas).
“Na SENAD, a gente ficava no corredor, batendo nas portas; na SENAPRED, a gente entra na sala, toma café, fala das nossas dificuldades e de nossos desejos para melhoria da comunidade. É uma diferença da água para o vinho. Você chega e eles te recebem, eles se tornam amigos, eles conhecem e visitam a sua comunidade, e o que é legal é que eles buscam soluções. Ninguém lá está esperando acontecer algo, eles estão fazendo acontecer. O Dr. Quirino está abrindo uma frente inédita”, observou.
Além disso, Célia é uma ferrenha crítica aos que entram no “mercado de comunidade terapêutica” sem o verdadeiro espírito da coisa. Por isso, defende a nova Política Nacional Sobre Drogas.
“Essa política serviu para que as comunidades se adequem a uma única política. Com isso, você sai daquelas comunidades que se denominam comunidade terapêutica e não são, porque a verdadeira CT tem o objetivo de reinserir a pessoa na sociedade de forma digna e completa, e não trazer a pessoa para humilhar, para fazer trabalho escravo, para dizer que ela é a escória da sociedade. Não é isso! E quem faz isso, com essa política nova, está acabando, e se Deus quiser elas vão desaparecer, porque os dependentes são pessoas preciosas. Cristo também morreu por eles”, encerra.
Atualmente, a Desafio Jovem conta com unidade em Taquara, na zona rural de Planaltina, no Distrito Federal.
Por Sérgio Botêlho Júnior